09/07/2021
Depois do ano mais difícil da história para as companhias aéreas, a aviação brasileira se prepara para ganhar pelo menos mais dois novos concorrentes nos próximos meses: a Nella, focada na aviação regional do Ceará, e a ITA, do Grupo Itapemirim, que conta com o público da sua consolidada malha rodoviária para decolar nesse novo mercado.
O americano John Rodgerson, presidente da Azul Linhas Aéreas, companhia que atende mais de 100 cidades no país, diz não temer os novos concorrentes no "oceano azul" da aviação regional brasileira. "Que sejam muito bem-vindos", disse o executivo em entrevista exclusiva à EXAME, mas ele faz um alerta aos novos entrantes:"Mas tragam muito capital, porque isso é fundamental para começar uma linha aérea no Brasil. Até mesmo as empresas bem capitalizadas no mundo estão sofrendo neste momento."
Após o baque da chegada da pandemia ao Brasil, que reduziu a malha das aéreas ao essencial, a Azul conseguiu reforçar seu caixa emitindo R$ 1,745 bilhão em debêntures conversíveis - mas não sem antes negociar um socorro com o BNDES e o governo federal, que acabou não acontecendo, segundo John, pela jogo duro do Ministério da Economia durante as tratativas.
"O jogo de 2020 e 2021 é giro, você precisa ter capital de giro para passar por esse período. O Guedes não queria dar moleza para ninguém e jogou duro, porque eles queriam arranjar uma solução de mercado para o capital de giro", explica Rodgerson. "Mas estar negociando com o BNDES comprou tempo com os nossos fornecedores até o mercado abrir novamente."
Confiante que a vacinação contra o coronavírus deve contemplar todos os maiores de 50 anos até o meio do ano, Rodgerson acredita que o segundo semestre será bem mais próspero que o primeiro e planeja, inclusive, reforçar a frota com mais dez aeronaves Cessna Gran Caravan. Com capacidade para nove passageiros, o modelo incrementa as operações da Azul Conecta, divisão dedicada a atender pequenas cidades, além de aumentar o alcance da Azul Cargo.
92% dos assentos vendidos por Latam e GOL passam por São Paulo, Rio ou Brasília. No nosso caso, são 38%. O que eles fazem não é ruim, mas eu acho que não é o futuro, porque é algo que já está desenvolvido. O nosso Brasil é diferente", explica o executivo. "O crescimento da cidade de Sinop, no Mato Grosso, nos últimos 20 anos, por exemplo, é 10 vezes o crescimento do Brasil, pelo menos. Tem que olhar o crescimento do PIB em Belém, em Cuiabá, como o agronegócio está impactando esses lugares... E é disso que nós estamos atrás, porque isso vai fazer as pessoas viajarem mais."
Confira abaixo os principais pontos da entrevista com Rodgerson:
EXAME: Numa entrevista recente você disse que acreditava numa recuperação ainda em 2021. Dado esse primeiro trimestre, essa projeção se mantém?
Sim. Se você olhar os números, podemos ter todos acima de 50 anos vacinados antes de julho. Olha o que aconteceu com as mortes acima de 80 anos! Caíram muito! É tudo sobre a vacinação. Quando ela acontecer, tudo vai voltar sim. Talvez o Brasil não cresça tão rápido, mas vai crescer. Teremos dois ou três meses difíceis ainda, mas chegando em julho os números vão cair muito.
Os atrasos na vacinação não comprometem essa previsão?
Pelo menos, desta vez deve ter um fim. O Brasil está três, seis meses atrás, mas vai voltar ao que era antes. A saída é vacinar o povo. Doria precisa disso, Eduardo Leite precisa, Bolsonaro, Luciano Huck… Todo mundo está alinhado nesse sentido. Eu não quero ser Pollyana. Não há dúvida de que vai ser difícil. Mas a vacinação é uma coisa que o Brasil sabe fazer, é só ter a vacina. No ano passado, 80 milhões de pessoas receberam a vacina da gripe. O SUS está em todo canto, então vai sair rápido. Temos que parar com as brigas políticas e ter todo mundo focado nisso.
Os economistas não estão tão otimistas. Por que você se mantém tão otimista?
O pessoal coloca aqueles óculos da Faria Lima e acha que o Brasil é a Faria Lima. Ter as nossas fronteiras fechadas obrigou o cliente AAA a viajar dentro do país. Esses caras frequentam Fazenda Boa Vista (condomíno de luxo em Porto Feliz, interior de São Paulo), vão para Trancoso, vão para os restaurantes tops, mas eles não sabem que o país está se desenvolvendo no Centro-Oeste e Norte.
O nosso Brasil é diferente. Nos últimos 20 anos, o crescimento em Sinop, no Mato Grosso, foi dez vezes o crescimento do Brasil, pelo menos. Tem que olhar o crescimento do PIB em Belém, em Cuiabá, como o agronegócio está impactando esses lugares. Tem muito milionário ali que quer beber vinho bom e levar os filhos para Disney. E é disso que nós estamos atrás, porque isso vai fazer as pessoas viajarem mais.
Qual o tamanho desse potencial crescimento?
O Brasil tem 200 milhões de brasileiros e 100 milhões de viajantes, o que quer dizer que a relação entre população e viajantes é de 0,5 - cada brasileiro viaja a cada dois anos. Mas os CPFs que viajam são uns 20 milhões - tem gente que faz ponte-aérea toda semana e tem gente que viaja uma vez no ano, mas todos estão dentro daqueles 100 milhões. Na Colômbia, essa relação é de 0,8 e no Chile é 1,3.
Hoje, nós temos mais ou menos 400 aeronaves no país. Para chegar no nível da Colômbia, vamos precisar de 250 aeronaves a mais. No caso do Chile, vamos precisar de 600 aeronaves a mais. Tudo isso mostra que o Brasil estava crescendo bem. Para o Brasil chegar a 0,8, a 1,3, temos que fazer algo diferente.
Em momento como este, difícil especialmente para a aviação, como está a relação da Azul com a Associação Brasileira das Empresas Aéreas?
Saímos da ABEAR pela questão concorrencial em Congonhas. Após a falência da Avianca, GOL e Latam não queriam abrir o aeroporto para mais voos, porque é um ativo deles, e isso mostrou uma divergência de interesses entre nós. Sempre falávamos de Galeão, Congonhas, mas nunca dos pequenos aeroportos, que são o nosso foco.
Claro que estamos alinhados contra o aumento de impostos para o setor, por exemplo, mas nós não precisamos de uma associação para ter mais voos. Nossos concorrentes voam para 50 cidades, e nós estamos em 116, e isso nos abre muitas portas em Brasília e em qualquer lugar.
Qual sua visão sobre Brasília? Como é trabalhar em um clima de tanta instabilidade?
Eu sempre brinco que se você tem um plano que depende do governo, você não tem um plano. O que eu aprendi sobre o governo nesses 13 anos em que eu estou aqui no Brasil é que, pelo menos, 92% do orçamento é fixo. Então, toda essa grande briga política é sobre 8% do orçamento. Não tem jeito.
Na época do Lula, o país estava bombando e nós tínhamos mais dinheiro, então teve mais jogada nos 8%. Não estou dizendo que foi a política dele, só que teve mais dinheiro. Hoje, a única maneira de ajudar o Brasil a ir para frente é reduzir esses 92%. Outra maneira de conseguir dinheiro é vendendo ativos para criar funding. Não é que eu sou liberal e quero vender tudo. Mas você tem que vender algo para ter o mínimo de dinheiro.
Parece que já se sabe o que tem que ser feito. O que falta?
O Congresso agora sabe que, se eles querem projetos nos seus estados, eles têm que mexer nisso. E o país precisa disso. Olha o câmbio aqui comparado com outros mercados emergentes… Todo mundo está olhando para nós e perguntando o que vamos fazer. Vamos aumentar juros a 15% de novo? Vamos fazer reforma de verdade? Quebrar o teto de gastos?
Mas você acha que isso acontece no curto prazo?
Este ano vai ser crítico. Eu acho que se tivesse uma oposição mais forte nesse momento seria mais difícil, mas quem é a oposição neste momento? Não tem. Eu acho que as reformas vão acontecer porque dessa vez não tem jeito.
Recentemente as aéreas foram prejudicadas pela volta do imposto sobre o leasing de aeronaves, que nunca foi cobrado, mas passou a ser. Isso aumenta a sua ansiedade por uma reforma tributária?
Minha conversa com o governo brasileiro tem sido assim: "os Estados Unidos e a União Europeia têm dado bilhões às empresas, e eles não tem imposto sobre o leasing. Vocês não nos deram dinheiro e vão fazer com que nós paguemos mais pelas nossas aeronaves do que eles pagam? Isso não é bom para o Brasil."
A Azul voa para Fort Lauderdale, na Flórida, concorrendo com a American Airlines, um saindo de Guarulhos e o outro de Viracopos, e eu tenho que pagar mais impostos que eles? A política do ministro Paulo Guedes é menos imposto, e agora não se pode ir na contramão disso. Eu entenderia se houvesse uma ajuda para nós e, por isso, um imposto. Mas não houve ajuda, tivemos que sobreviver por nós mesmos. Então, não dá pra colocar esse imposto agora.
Como você avalia o suporte do governo na pandemia?
O que eu diria é que, na parte do BNDES e capital de giro, o governo foi muito difícil para nossa indústria - e até o Guedes te confirma isso, porque ele não queria dar moleza para ninguém e foi duro. Eu briguei com ele, disse que ele estava ajudando a Faria Lima e me prejudicando. Mas é o papel do governo, ele não queria dar moleza para ninguém.
O governo ajudou mesmo foi com a Medida Provisória que nos deu mais tempo para reembolsar passagens, porque o jogo de 2020 e 2021 é giro, você precisa ter capital de giro para passar. O pessoal da Economia jogou duro, porque eles queriam arranjar uma solução de mercado para o capital de giro. Mas o Ministério da Infraestrutura ajudou com a MP que nos ajudou a respirar um pouco. E estar negociando com o BNDES comprou tempo com os nossos fornecedores até o mercado abrir.
O que espera do governo agora em relação ao socorro às empresas?
Temos que olhar o que está ajudando o Brasil. Nós pagamos um monte de impostos, compramos aeronaves locais… Nos meus hubs no Nordeste, eu tenho pilotos, comissários, pessoas que ganham muito acima do salário médio do país, que é o mesmo salário que eles ganham em São Paulo. Geramos empregos qualificados fora dos grandes centros.
Nós temos que olhar indústrias que estão ajudando o país dessa forma, e isso faz uma grande diferença. A cadeia é grande, e isso ajuda. Nós não somos uma atividade fim, nós somos um meio. Quando você olha Viracopos hoje, sem a Azul, como seria a arrecadação ali? Nossa entrada lá mudou completamente o interior de São Paulo. Isso é muito importante para o Brasil de agora e para décadas na frente.
A Azul se consolidou fortemente nos mercados regionais, que antes praticamente não eram explorados. Como isso aconteceu?
É muito fácil dizer “eu tenho um tipo de aeronave” [como a GOL, que só opera Boeings 737], mas a verdade é que você não pode voar numa cidade pequena com uma aeronave de 180 lugares. Você vai ficar entre Rio e São Paulo mesmo. Nós investimos na diversificação da nossa frota, e mais de uma vez: começamos médio, com o Embraer, depois menor, com o ATR, e depois fomos para cima, com os A330. E agora a Azul Conecta, que opera aeronaves de nove lugares.
Precisamos acessar demanda em todos os cantos, porque com certeza tem gente querendo viajar. Em um mercado onde a demanda está caindo, como em 2020, ter flexibilidade para voar em uma aeronave menor é fundamental. Essa rota vai dar certo? Não sei. Bota o Gran Caravan. Se encher, coloca o ATR. Se encher, bota o Embraer. Isso é bom.
Se é simples assim, porque as companhias não foram? Elas não queriam?
A briga sempre foi por aquele mesmo triângulo: São Paulo, Rio, Brasília. 92% dos assentos vendidos por Latam e GOL tocam uma dessas três cidades. No nosso caso, é 38%. O que eles fazem não é ruim, mas eu acho que não é o futuro, porque é algo que já está desenvolvido. Mas se você mora em Minas é diferente. Em Belém, no Centro-Oeste… Para atender essas regiões, você tem que ter habilidade para investir, o que não é fácil assim.
Nós investimos 1,3 bilhaõ de dólares do Equity para criar o que nós temos hoje. E um monte de dívida para comprar aeronaves novas, treinar pessoas. Por isso, eles lutaram tanto para evitar que nós entrássemos em Congonhas. “Você pode fazer aviação regional, mas eu tenho que proteger o que é meu”, eles pensaram.
Com novos entrantes, como a Itapemirim ou a Nella, a Azul vai deixar de estar sozinha nesse "oceano azul"?
Sejam bem-vindas. Mas eu faço um alerta para elas: tragam muito capital. Isso é fundamental para começar uma linha aérea no Brasil. É preciso ter certeza de que elas estão muito capitalizadas, porque até mesmo as empresas bem capitalizadas no mundo estão sofrendo neste momento.
Quais os planos de expansão da Azul Conecta, a nova subsidiária da companhia no mercado regional?
Nós temos uma meta de chegar a 200 cidades no país. Só no Rio Grande do Sul, vamos servir 15 cidades. E vamos fazer isso em Minas, Pernambuco… Se eles baixarem os impostos, podemos fazer muito mais. O Verão Azul, que atendeu cidades turísticas apenas nas férias, foi muito bom para a nossa marca, é uma coisa que nós vamos continuar. Muitos desses destinos não são rentáveis em maio e junho, por exemplo. Mas é importante voltar no ano que vem. E você só chega a esse número de cidades se tiver mais aeronaves. Estamos pensando em mais 5 ou 10 aeronaves para o Azul Conecta, inclusive alguns que são dedicados somente a cargas.
O mercado de cargas é um dos que têm ido muito bem, mesmo em meio à pandemia. A Azul Conecta ajuda vocês a aproveitar esse boom de cargas?
Hoje temos gigantes brigando pelo espaço de e-commerce pelo país. Para justificar o valor de mercado dessas empresas, você não pode estar só no Sudeste. Você precisa entregar no próximo dia no país inteiro, e nós servimos muitas cidades. Então, se você quer mandar um iPhone de São Paulo para Sinop e o cara quer pagar para receber no próximo dia, é só com a gente. Por isso, eu acho que a logística nesse país está fazendo muita coisa.
Você é um estrangeiro que está no Brasil há 13 anos, talvez os mais conturbados da história recente do país. Pretende continuar por aqui?
Eu cheguei no Brasil o Cristo decolando, o dólar a R$2 reais. Eu já vi um impeachment, um ex-presidente preso, o Marcelo Odebrecht preso, já vi juros a 5% e juros a 2%. O dólar a R$3 e a R$6; PIB crescendo 7,8% e caindo a 4% … Mas eu estou aqui porque é uma grande oportunidade. A festa de viver de juros acabou e quem tem grana tem que aplicar e investir no país. No passado, todas as empresas eram de famílias ricas. Por isso eu sou mais otimista, porque hoje as pessoas têm que fazer as coisas.
Fonte: EXAME.COM - Por Gabriel Justo